A catraca dupla e o mito da evasão nos ônibus
Instalação do mecanismo acontece sem discussão pública e nega ainda mais o direito ao transporte
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato Minas Gerais
Nos últimos meses, circularam fotos e vídeos de “catracas duplas” em alguns ônibus de Belo Horizonte. A catraca dupla é exatamente isso: uma catraca instalada em cima de outra. A iniciativa é do Transfácil, consórcio de empresas que opera o sistema de transporte coletivo na capital. O objetivo é impedir o “pulão” nos ônibus.
Esta proposta é nada menos do que absurda. A catraca dupla dificulta ainda mais a já precária acessibilidade nos ônibus, tornando praticamente impossível o acesso para pessoas idosas, gestantes e obesas. Pessoas com crianças de colo, mochilas e bolsas também encontram mais uma barreira no uso do transporte.
Além disso, os passageiros são obrigados a colocarem as mãos na catraca e a aproximarem do rosto, aumentando os riscos de contágio nesse momento de pandemia. A implantação desse dispositivo é mais uma medida que piora a qualidade do transporte e afasta os passageiros.
Como quase sempre, a BHTrans, órgão que deveria fiscalizar o sistema de transporte na cidade, não se manifestou. A instalação dessas catracas, portanto, acontece sem qualquer tipo de discussão pública: não houve apresentação do tema nas CRTTs, as Comissões Regionais de Transporte e Trânsito, ou no COMURB, o Conselho Municipal de Mobilidade Urbana – que, vale lembrar, está inativo desde 2016.
Se a catraca dentro dos ônibus já é um dispositivo de controle que deveria ser eliminado, a roleta dupla é um verdadeiro escárnio. As empresas dizem que o dispositivo é “para segurança”. Segurança de quem? E seria essa tal “segurança” efetiva?
O famoso e tão temido pulão não passa, na maioria dos casos, de uma figura de linguagem para indicar outras práticas de quem muitas vezes não pode pagar a tarifa, como entrar pela porta de trás ou ficar no espaço antes da roleta. Ou seja: não apenas a catraca dupla é absolutamente ineficaz em deter o que os empresários chamam de “evasão”, como também – e por isso mesmo – é uma medida ideológica e simbólica de ódio ao pobre, que sequer é reconhecido como cidadão.
O pobre aqui é descaradamente concebido como criança a ser controlada, ameaçada e coagida, ao invés de ser tratado como um cidadão que tem seu direito ao transporte sistematicamente negado devido ao alto valor da tarifa. É sério que com essa engenhoca classista evitaremos, conforme nos asseguram os empresários, um novo aumento? Ora, se como acabamos de esclarecer isso sequer evita a “evasão”, quem dirá um futuro aumento que vai ser, inclusive, justificado com base nessa mesma evasão.
Este retrocesso precisa ser barrado. Aguardamos o posicionamento contrário da BHTrans, da Prefeitura e da Câmara de Vereadores. É um dever desses órgãos que essa ação seja vetada, ainda mais pela falta de transparência e participação popular. Somos nós as pessoas que estarão sujeitas a esta violência e nossa voz parece ser a que menos importa. É simplesmente vergonhoso que órgãos públicos considerem aceitável tratar as pessoas desta forma. Nossa luta é por uma vida sem catracas.
Annie Oviedo e Graziano Mazzocchini | integrantes do movimento Tarifa Zero BH