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Texto originalmente publicado na coluna Busão Nosso de Cada Dia do Brasil de Fato Minas Gerais
Na primeira vez em que contribuí para a escrita desta coluna, e precisei assinar, ou seja, dizer quem eu sou, queria ter escrito o seguinte: integrante do Tarifa Zero, passageira de ônibus e gótica suave. Sim, gótica suave. Não exatamente uma foliã carnavalesca. Mas do tipo que acha que Morphine foi a melhor banda que aconteceu nos anos 1990, que curte as festas de pós-rock-synth-pop no Matriz Casa Cultural, que se emocionou quando viu Black Sabbath ao vivo, que montou uma playlist com Só As Mais Tristes do Black Keys. Com a benção da deusa do tempo, não sou mais uma adolescente que acha que o seu é o único gosto musical possível. Gosto de música no geral e escuto de tudo um pouco, mas a verdade é que são essas as coisas que fazem balançar meu coração, sabe como é.
Então, em uma fatídica sexta, acordei para trabalhar e o álbum Pula Catraca! estava disponível nos vários tocadores de música da internet. Coloquei ele para tocar na copa, enquanto passava o café, para finalmente ouvir o resultado do trabalho e esforço dos companheiros e das companheiras de movimento. E então, eis que, de repente, me vi chorando, não umas lagriminhas de alegria, chorando de soluçar mesmo, pensando em tudo que fizemos e fazemos, no que aquelas músicas representam, cantando “tarifa zero, iniciativa popular, pra viver nessa cidade sem chorar” a plenos pulmões.
Isso aconteceu no dia 27 de agosto, quando o Tarifa Zero BH lançou o Pula Catraca!, um disco de marchinhas e músicas inéditas do bloco de carnaval de igual nome, o Pula Catraca, braço carnavalesco do movimento. A realização do disco foi possível graças ao apoio financeiro, mas também à parceria e à confiança da Fundação Rosa Luxemburgo, que acreditou no projeto e em sua importância. Afinal, as marchinhas que cantamos há vários anos nas ruas estão agora gravadas, um registro histórico desse encontro muito belorizontino do fazer político dos movimentos sociais com a arte e a cultura.
“E o balaio cada dia mais precário garante lucro só no bolso do empresário, tarifa zero valoriza o seu salário, por tudo isso somos antitarifários! Se você paga, não deveria, pois o transporte não é mercadoria!” É isso, pensei, tudo que fazemos, todo o corre infinito que é construir uma luta, a beleza que é o fazer coletivo, contra tudo e todos, está tudo no disco. Um pouco surpresa com minha reação, fui trabalhar.
Acabou o dia útil, me sentei no sofá de casa com uma garrafa de vinho para assistir à live de lançamento. Ali estavam os músicos que participaram da gravação apresentando versões das músicas em violão e voz.
Logo nas primeiras, me lembrei de um dia, aliás uma noite, pós reunião, em que estávamos no Renê tomando uma cerveja, momento também conhecido como GT Boteco. Eu tinha chegado no movimento há pouco, ainda estava entendendo as coisas, criando intimidade. Parou na mesa um cara que eu não conhecia e cumprimentou todo mundo. Tinha sido integrante do movimento tempos antes. Me apresentei e ele disse: olhaí, a nova geração TZ! É que o tempo passa para todo mundo, inclusive para os movimentos. Em uma época, eu fui a novata no rolê, chegando enquanto muitas outras pessoas já tinham deixado suas contribuições para a luta. De tempos em tempos, aparece alguém das antigas, outras vezes alguém desaparece, ou então alguém se junta.
A gravação do disco teve um pouco disso, pensei vendo a live sobre a conexão de diferentes gerações do movimento, sobre momentos diferentes, sobre traçar um registro. Noto uma coisa curiosa. Todo mundo que é mais das antigas e que se apresentou na live chamou o movimento de TZ, têzê. Percebo porque, em geral, quase todo mundo que é integrante hoje chama o movimento de “o Tarifa”, apenas. Um hábito linguístico que mudou. Que coisa.
Ouço os músicos contando casos, lembrando de acontecimentos antigos, como foi que se pensou nessa ou naquela composição e me sinto parte dessa história. De repente, em meio a essas reflexões, eis que me ocorre que várias daquelas pessoas falam do têzê com saudade, lembram da correria para fazer as coisas acontecerem. Talvez seja por isso que o disco me emociona tanto, mesmo que o carnaval e suas músicas não sejam minha praia. As músicas e as pessoas ali representam um florescer político e coletivo quase sem precedentes.
Um momento em que a luta se nutre de criatividade e ser militante se confunde com o ser outras coisas, como músico, artista gráfico, regente, escritor, ator. Ser militante, muito mais do que esta ou aquela posição política, é fazer acontecer. Então vamos fazer um bloco de carnaval? Vamos. Vamos colocar um ônibus de graça para ir de um bloco ao outro? Vamos. Nossa esse busão podia chamar busona! Podia. Vamos fazer um abaixo-assinado para que o projeto de lei de Iniciativa Popular pela tarifa zero exista? Vamos.
Não é só o objetivo que conta. Claro, queremos ter tarifa zero no transporte. Mas o processo e a forma contam também. Então, se tem tanta gente que gosta de carnaval, vamos fazer um bloco. Se tem tanta gente boa de números, vamos calcular a tarifa. Vamos puxar atos na rua e ocupar todas as faixas. Há uma energia coletiva no ar, uma potência que se realiza. Movimento social é isso. Esses momentos de desabrochar trazem muita gente para perto, que talvez fique por lá, talvez não. O Tarifa tem isto, as pessoas transitam, passam, voltam, colam para esta ou aquela coisa.
Sonhar coletivamente nos dá a possibilidade de imaginar outros futuros, outros mundos. Fazer coletivamente nos permite realizar algo desses sonhos aqui e agora, do jeito que a gente quiser, com a beleza que têm as coisas que não são necessárias, que ninguém nos obriga a fazer, que não são por dinheiro. O disco é tudo isso.
“Pro dinheiro da passagem nunca mais aprisionar”.
Agora isso está registrado. As reuniões são abertas e é só vir com espírito antitarifário. Chega mais e participa do têzê, do tarifa, do jeito que você quiser! Cola com nós, que ninguém faz luta sozinho, é isso.
Annie Oviedo, passageira de ônibus, gótica suave e integrante do Tarifa Zero BH.